17/03/2008




EB1 VÁRZEA - LEIRIA





Na EB1 da Várzea, no Concelho de Leiria, trabalha o professor Luís Mourão, tutor THEKA dos cursos de 05/06 e 06/07.

Com um longo percurso como professor, em muitas escolas deste País, é também um homem do teatro e das artes, desenvolvendo com as suas turmas Projectos Especiais. Uma das suas principais preocupações, é formar jovens criativos e autónomos.

Em casa do Luís, a comemorarmos os seus 50 anos, tomei conhecimento de um artigo sobre Escrita Criativa a partir dos Biopoemas publicado na Revista Noésis (Noésis nº 72 Janeiro /Março 2008 ), tendo o Luís autorizado a sua publicação no Blog.


O rio partiu-se


O rio partiu-se

J. chegou ao pé de mim e comunicou-me, como já tinha feito a toda a gente, que fazia anos. Sete anos. Foi por isso que nós decidimos fazer um bolo de mentiras naquele dia.
Escrevemos mentiras, grandes mentiras, com empenho e fúria, sobre nós e sobre outros, em pedaços de papel que juntámos numa caixa de sapatos e depois de termos baralhado tudo tirámos à sorte para ver se descobríamos quem tinha escrito o quê. Às vezes era fácil: J. escreveu, “Eu não faço anos”. Outras vezes não era tão fácil: E., por exemplo, resolveu dizer-nos, “Eu [sou] azul cor-de-rosa laranja” e ficámos ali a olhar uns para os outros até repararmos que E. estava mesmo azul cor-de-rosa laranja.
Este jogo, com direito a canção de parabéns e muito riso, é um dos muitos que fazemos quase todos os dias, aqui, na sala do 2º ano da Escola da Várzea – Agrupamento de Escolas Dr. Correia Mateus, em Leiria.
E, lentamente, estas brincadeiras com os sons, as palavras e as frases vão-se tornando parte integrante da forma como vamos crescendo. Conversando, claro, lendo e escrevendo, comunicando e comunicando-nos melhor. Nem todos da mesma forma, nem todos com o mesmo domínio instrumental, porque nisto como noutras coisas cada um sabe de si.
Trabalhamos sempre sobre estruturas simples. Porque, além do mais, é esta rudimentaridade inicial que nos permite, mais tarde, complexisar infinitamente. E é precisamente na forma como elaboramos sobre a simplicidade que nos revelamos. É o estilo, se quiserem. Mas, também, o espelho de competências de escrita mais ou menos desenvolvidas. A forma como somos capazes de encontar formas eficazes de corporizar as ideias e de como nos entendemos quanto às suas consequencias em nós e nos outros.
Para mim, todos os jogos de escrita que fazemos são como pedrinhas que vamos deixando no chão desta enorme selva fonética, ortográfica, sintáctica e gramatical que temos forçosamente de atravessar. São sinais, quase imperceptiveis, que nos permitirão um dia regressar à extrema eficácia comunicacional. Ou descobri-la. E no acto encontrar estas marcas que chamamos de criatividade.
Há uma ano chovia torrencialmente. Uma noite, por toda a região, caíram muros e árvores, inundaram-se casas, armazens e ruas. H. chegou à escola de mochila às costas ziguezaguiando por entre o intransitável e correu para mim: “Professor,” disse ele, “o rio partiu-se”.
O rio partiu-se. O nosso maior objectivo é voltar aqui.

Desenhar uma porta

Como se fosse um barquinho de filigrana vamos construindo a ideia de que nos conhecemos bem. Todos o fazêmos de forma contínua e imparável, como se fosse natural que nos conhecêssemos até à revelação que nos permite antecipar comportamentos e atitudes. Não é verdade, creio eu, mas, a cada novo ano com as mesmas crianças é como se fosse mais verdade.
Felizmente elas têm uma proverbial e reconhecida capacidade de nos surpreender todos os dias. Uma habilidade especial de fazer diferente, e ser diferente, quando querem, independentemente, do local e do tempo. As crianças são neste aspecto personagens dramáticas ideais. Protagonistas que se admiram constantemente quando não aplaudimos e quando aplaudimos. Mistérios, portanto.
No início deste ano estava eu muito quietinho a olhar para eles e a pensar que tinham passado três meses sem os ver e havia já tanta coisa diferente quando percebi que nunca os tinha conhecido. Nunca, mesmo. Reconhecerão que é legítima a minha inquietação depois de termos passado quase mil horas juntos durante o ano pretérito. Mas foi mesmo assim.
Precisava de um jogo que pudesse ser repetido algumas vezes, em tempos diferentes e até sobre diferentes pessoas ou coisas e que permitisse deixar registos comparáveis e padronizáveis. Um jogo de escrita que fosse exercício solitário simples, relativamente rápido, permitindo a crianças pouco mais do que emergentes das fases iniciais de domínio da escrita exprimirem-se sem grandes dificuldades. Sendo que, independentemente da qualidade do produzido, deveria ser obrigatoriamente estímulante, divertido e eficaz. Um jogo que me ajudasse a perceber melhor o que está por dentro das cabeças dos meus alunos. Batendo à porta e pedindo para entrar, evidentemente.
E lembrei-me dos biopoemas. Estruturas muito abertas assentes num formalismo superficial de muito fácil leitura que permitem trabalhar sobre quase tudo, objectos de pesquisa, pessoas, animais, coisas e, sobretudo, sobre nós. Os biopoemas são muito utilizados, particularmente pelos norte-americanos, nas etapas iniciais de um processo de dinâmica de grupo, nas escolas, nas empresas ou informalmente mas, como acontece com quase todos os bons exercícios de escrita criativa, não são de ninguém e podem ser usados como muito bem acharmos conveniente. Podem ser alongados ou condensados, laudativos ou insultuosos, uma cadeia de verdades ou de mentiras descaradas que, na verdade, nada de essencial se altera. Um biopoema é sempre nosso em toda a sua dimensão.
Na verdade o seu único elemento estável é o primeiro verso ser o nosso nome e o último o apelido. Não é coisa desprezível.

Querer beijos e miminhos e ter medo de lobisomens e alturas

No outro dia cheguei à sala e escrevi no quadro o meu biopoema. Não é exemplo para ninguém mas serviu para começarmos a conversar.
O nosso poema tem onze versos, podia ter cinco ou quinze mas tem onze, como agora se vulgarizou, e parece bem ser assim. Ainda está vazio, como o quadro que eu me apressei a apagar. Quando tudo parecia ter ficado suficientemente esclarecido disse-lhes: “Primeiro verso: O nome”. Fácil.
A primeira decisão teve de ser tomada quando partimos para o segundo verso. Isto é, agora que tinhamos escrito o nosso nome seria melhor, ou não, fazer de conta que estávamos a falar de outra pessoa? Escrever sobre nós como se não estivessemos a escrever sobre nós? Aos sete anos? A M. decidiu a coisa assim: “Tanto faz.” É verdade. Mas também é verdade que todos, neste caso, escreveram como se falassem de outros.
A grelha de indicações utilizada foi esta:
1º O nome (só)
2º Quatro adjectivos que o decrevam
3º Irmão ou irmã de… ; filho ou filha de …; etc.
4º Gosta de…(fazer; ver; comer… 3 coisas, sítios ou pessoas)
5º Que se sente (contente; triste; feliz; aborrecida… 3 coisas)
6º Que precisa de… (3 coisas)
7º Que… (dá ou faz aos outros… 3 coisas)
8º Que tem medo de… (3 coisas)
9º Que gostava de… (ir; ter; ser… 3 coisas)
10º Que vive (ou que mora; ou que vive… e mora…)
11º Apelido (só)
A cada novo verso renovava-se o tema da conversa. E, aos poucos, cada um de nós ia aprendendo mais sobre os outros. E sobre a escrita também. Como é que juntamos um enunciado de forma coerente e agradável? Pontuamos as frases construídas ou deixamos que se possam misturar com as outras? Eles têm sete anos mas trabalharam muitos poemas durante o seu primeiro ano na escola, sabem um bom punhado de memória e sobre cada um deles muito mais do que eu suspeito. Por isso, suponho, esta conversa me faz, aqui e ali, esquecer que ainda são tão pequenos e seja preciso olhar para eles para domesticar um comentário ou adoçar uma ideia. Suponho que, de alguma forma, este esquecimento seja também um modo de sofrer directamente o que é escrever criativamente. Talvez faça parte.
Uma das virtudes do trabalho com estes níveis de escolaridade é podermos, digam o que disserem, gerir os tempos e as matérias de acordo com as crianças, os seus interesses e necessidades mas, hoje, era eu que já estava a ficar cansado e decidi acabar no sétimo verso. Amanhã se continuaria, e agora uma coisa completamente diferente, mas não. E como não, lá acabámos todos o biopoema tarde e a más horas. Eles tinham razão, foi melhor ir almoçar a saber que este tinha medo de cobras venenosas e outro de morrer na queda de um avião, outro de morrer queimado e outro de lobisomens e que muitos, todos creio, precisavam de beijos e miminhos, festas e coisas boas.
Ficou, como podem ver, provado à saciedade que tanto pode ser assim como de outro modo. Demorar dez minutos ou três horas, ser escrito por adultos ou crianças, de sete ou dez anos, adolescentes ou jovens adultos, indiferenciadamente. Talvez os medos e os gostos, talvez o que fazemos a nós próprios ou aos outros mude. Talvez.
A minha colega Paula, porque a Helena com o seu primeiro ano ainda anda às voltas com outras coisas, experimentou um biopoema com o seu quarto ano e aprendeu tanto como eu. Simples, muito mais rápido e, pelo menos, tão eficaz.
Se há coisa bonita na escrita criativa, seja qual for o exercício, é ver como as ideias contaminam o papel e por ele se espraiam e como em cada ideia vai um pedaço de nós. Ficamos todos tão bonitos.
No dia seguinte voltámos ao poema para corrigir e alterar. Ninguém alterou nada mas fizémos um cartaz. Cada um de corpo inteiro com o biopoema na barriga. Este, por exemplo:
“J….
Alto, brincalhão, trabalhador e dorminhoco
Irmão de R….
Gosta de jogar à bola, andar de bicicleta e saltar
Que está feliz, contente e alegre
Que precisa de ar puro, praia e pinhal
Que ajuda a mãe a limpar, a fazer a cama e a lavar o cágado
Que tem medo de cobras venenosas, lobisomens e morrer queimado
Que gostava de ser jogador de futebol, dar a volta ao mundo e ter uma bola
Que vive na Terra, na Europa, em Portugal e mora no Casal dos Matos
D….”
Colámos os cartazes na parede do átrio. E fizémos uma visita guiada pela cabeça de cada um, naquele dia, naquela hora, naquele instante. Em breve lá voltaremos.

Luís Mourão

Obrigada Luís, como é bom ainda acreditarmos na escola e nos professores deste País.
Nas imagens podemos observar os trabalhos realizados pelos alunos do 2º Ano da EB1 da Várzea.


Ana Melo







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